A menina que via seu já falecido avô se balançando na rede da cozinha e chamando-a, também, às vezes, via um bruxo de turbante mexer um caldeirão ao pé da sua cama, enquanto ela tentava dormir. O que achava mais interessante é que o bruxo, o caldeirão, a colher de pau, o turbante – tudo parecia uma fumacinha transparente. Mas, o bruxo ria e conversava com ela.
Essa mesma menina tinha medo de um índio que se desenhava na parede, como projeção de um filme. Começava como num rabisco, que virava uma floresta. Então, feito o cenário, vinha o índio raivoso, lhe atirava flechas, e ela, se escondia tremendo de medo, embaixo do cobertor.
Por vezes, viu uma mulher estranha, amamentando uma criança, aos pés de sua cama.
Às vezes, via animais selvagens andando em seu quarto. Outras, inúmeros bonecos parecidos com os da “Michelan” pendurados em seu guarda-roupas, subindo, escorregando e perturbando seu sono.
Certas noites um vulto esbranquiçado lhe contava histórias de como era ser adulto. E avisava à menina, que ela nunca saberia como seria, pois, só contava-lhe essas histórias porque a menina nunca passaria dos vinte anos… assim o vulto branco dizia.
Tinha até um belo rapaz, jaqueta de couro, calça jeans, cabelos loiros bem penteados, rosto encantador, sem olhos, que vigiava seu sono.
Menina perturbada essa, que, quando tranquila sentia o cheiro de flores. E ouvia alguém lhe chamando. Mas, não havia ninguém.
Só ela via. Só ela sentia. Ninguém mais.
Fora levada ao oftalmologista. É, melhorou a vista… Mas, como ela não via o convencional, lhe levaram à benzedeira e ao padre. A vista melhorou ainda mais…
Um belo dia em visita à sua terra natal, foi convidada para um passeio à cavalo e tomar banho no açude. Seus primos sabendo das histórias assombrosas, decidiram que também tinham algo para lhe mostrar, mesmo que fosse uma brincadeira.
Começou a escurecer. A menina, sua prima e seu primo voltavam, cada um em um cavalo. A estrada estreita, de areia branca, cercas dos dois lados, cajueiros, mangueiras e muricizeiros…
E, a lua já descia, prateando o chão. E só havia a luz da lua. Foi aí que o primo quis assustar a menina. Disse que iria chamar o moleque saci. A menina conhecia bem as histórias do dito moleque. E, já o sentia por entre as árvores. Mas, não se opôs. Tantas coisas já tinha visto, que não se preocuparia com isso.
Sua prima pediu inúmeras vezes que não o chamasse. Em vão. Ele, montado no cavalo, seguindo a estradinha, começou a assobiar. E nada. E assobios. E nada.
De repente, começou um rodamoinho gigantesco no meio das árvores… As folhas caídas se erguiam como se fossem alguém. E, esse rodamoinho alguém, de vento e folhas, vem justamente para cima do primo. Cobriu ele e o cavalo!
O primo, já não mais assobiava. Olhos grelados olhando o rodamoinho. O desespero se apoderou dele, que começou a gritar.
Os cavalos desembestaram e só pararam quando chegaram em casa.
Nisso, a noite já havia caído. A menina curiosa e ainda sem fôlego pergunta ao seu primo o que ele tinha visto. Não houve resposta. Nem um “piu”. Nem um “a”. Ela o compreendeu perfeitamente.
Mundo maravilhoso esse, de coisas imensuráveis, inexplicáveis e imprevisíveis.
Parabéns pelo conto — conforme disse mestre Manoel, ele prende a atenção do leitor. Tudo flui muito naturalmente, parece que é um pedaço da vida, não uma estória escrita no computador..
No contexto brasileiro, essa coisa de ver espíritos é perfeitamente natural. Somos um povo místico e religioso.
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Obrigada “musicaefantasia”. Qual de vocês hoje comenta?
Exatamente. E contradizendo a esse misticismo e religiosidade, intencionalmente finalizo o texto com coisas “imensuráveis, inexplicáveis e imprevisíveis”…
Mas, concordo contigo. Cada nação tem seu tempo e momento. Ainda somos um povo místico e religioso.
Agradeço muito por seu comentário, que é para mim um termômetro me dizendo que estou dando certo nessas veredas. Bjs.
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Olá !
Somos amadores de cultura, portanto bárbaros. Pouco temos a dizer.
Sua sensibilidade de poeta é muito maior do que do que nossa sensibilidade de amadores da arte, somada e multiplicada. Pode confiar nela.
Quem sabe nossa ignorância possa trazer alguma pergunta interessante.
Em particular, desculpe-nos por perguntar, mas você confrontou um sentimento místico, imaginário, subjetivo (as visões da menina), com um elemento da realidade objetiva, o redemoinho, não é isso ?
Por último, quem fala aqui é um pisciano de origem lusitana — nós nos alternamos a cada 5 dias. Mas não se preocupe com isso: nossas opiniões são bastante debatidas em nossas reuniões d pauta. Em geral, a ideia de um é a ideia do outro, pois só decididmos quando em total consenso.
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Sim, pisciano de origem lusitana. E conforme a lenda, o saci aparece em forma de um vento forte ou rodamoinho.
E, se vocês são bárbaros, é de bárbaros que o mundo precisa.
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A gente não deveria se identificar, conforme disse antes, mas somos primos de nosso amigo comum Mariel Fernandes, também blogueiro aqui.
Você o conhece ? Não é porque somos da mesma família, mas o cara é muito bom.
A respeito do Saci, poderíamos perguntar se a poeta chegou a ler (e gostar) de Monteiro Lobato ?
Aquele livro bacana, O Saci, tinha justamente a fluidez narrativa, que vimos em uma outra postagem de sua autoria.
Agradecemos suas palavras sempre muito gentis.
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Sim, o amigo Mariel é muito bom!
A respeito do Saci, a poeta não teve muita orientação do que ler em sua época de infanto-juvenil. Mas, teve acesso a uma fabulosa biblioteca pública, em sua escola. E, entre livros para diversas idades, numa época que era pra ser de Monteiro Lobato, por exemplo, leu na verdade, quase toda a “Coleção Vaga-Lume”.
A poeta, que aqui lhes fala, agradece a comparação de Monteiro Lobato com a fluidez de sua própria narrativa. Mas, tem plena consciência de que ainda deve melhorar muito.
Apreciei o diálogo com o pisciano de origem lusitana.
Aguardo a visita dos outros signos e prometo retribuir com Música&Fantasia.
Bjs.
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A poeta que nos escreve leu Monteiro Lobato indiretamente: sendo ele um mestre da literatura infanto-brasileira, influenciou um monte de gente, os chamados diluidores. Se tiver um tempo, leia um pouco sobre isso em nosso blogue:
Mesmo depois de velho, ainda vale a pena ler Monteiro Lobato: temos provavelmente o dobro de sua idade, mas de vez em quando ainda folheamos o mestre. As estórias infantis dele podem ser lidas como pura poesia, ou talvez sonho.
E há muita informação, muito significado por ali. Talvez cada livro dele corresponda a uns 10 ou 20 livros infantis atuais. 😎
Por último, mas não menos importante, sua fluidez é visível e indiscutível, não a menospreze. Claro que pode ser melhorada, mas todos temos que aprender, quer sejamos mestres, inventores, diluidores etc.
Os outros 4 signos com certeza a visitarão mais vezes: estamos programando visitar sistematicamente os melhores blogues.
Visite a gente quando puder. Traga um bolo, que o cafezinho a gente garante. 😎
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Sim, faz todo sentido. Acabamos por ler, mesmo que indiretamente.Até! 😎
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Por favor: queira nos desculpar por insistir com tantos comentários. Mas valeria a pena só comentar mais uma coisainha. :-S
Quando ler, tente ler primeiro os mestres — de qualquer tempo, não apenas os velhòes. 😎
Eles é que mostram as melhores ideias, os melhores estilos, o melhor pensamento. Eles é que nos ensinam a ler e treinam nossa sensibilidade — por isso são chamados de mestres. Para uma poeta e contista de talento isso é ainda mais importante.
Procure o que o pessoal chama de paideuma. Pedindo desculpas também pela autopropaganda falamos disso em nosso blogue.
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Puxa, muito interessante isso! O próprio Nietzsche fala algo semelhante no livro Além do bem e do mal, quando se refere às traduções dos textos:
“(…) O ritmo do estilo é o que há de mais difícil de traduzir de um idioma para outro, depende do caráter da raça ou, para falar em termos mais fisiológicos, do ritmo médio de sua respiração.
Há uma infinidade de traduções que foram feitas com boas intenções, mas que são quase falsificações, porque se esqueceram do caráter verdadeiro do texto original, ou de seu tom vigoroso e alegre, que ajuda a sobrevoar tantas coisas e palavras perigosas. (…)”
Vou pesquisar!
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Por favor, queira nos desculpar: paideuma é uma palavra usada por muitos autores, com sentidos diferentes. Estávamos falando do paideuma poundiano, que mencionamos em
Muito obrigado.
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Agradeço a indicação!
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Oi Manoel! Que bom que consegui prender a atenção. Tentei construir um texto que fosse direto ao assunto, sem artifícios, mas que, ao mesmo tempo gerasse curiosidade de se saber como terminaria. Que bom que gostou! Agradeço a visita. Um beijo.
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Gostei muito desse conto. Conseguiu prender minha atenção do princípio ao fim.
Um beijo,
Manoel
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